Autor: Editoria de Folclore - Site de Dicas[1]
Revisto e Atualizado: 02 de Janeiro de 2025
O Pé de Garrafa é uma criatura que vive nas matas e capoeiras. Raramente é vista. Mas ouvem sempre seus gritos agudos. Algumas vezes são amendrontadores ou tão familiares que os caçadores procuram-no, certos de tratar-se de um companheiro ou parente perdido no mato. Outras vezes, aqueles gritos, mais parece coisa do outro mundo.
E quanto mais procuram, menos o grito lhes serve de guia, pois, multiplicado em todas as direções, desorienta, atordoa, enlouquece. Então os caçadores acabam perdidos, ou voltam para casa depois de muito esforço para reencontrar o caminho conhecido.
Quando isso acontece, sabem logo que o temível Pé de Garrafa está por perto. Assim, não será surpresa nenhuma, se, a partir daquele momento, em qualquer parte da floresta, não encontrarem os vestígios inconfundíveis de sua passagem, claramente assinalado por um rastro redondo, profundo, lembrando perfeitamente um fundo de garrafa.
Supõem que o estranho fantasma tenha as extremidades circulares, maçicas, fixando assim os vestígios que lhe servem de assinatura. Vale Cabral[2], um dos primeiros a estudar o mito do Pé de Garrafa, considera-o natural do Piauí, morando nas matas como o Caipora. A julgar pelas enormes pegadas que ficava na areia, ou no barro de massapê, devia ser de estatura invulgar, talvez maior que dois homens.
Outro historiador, o Dr. Alípio de Miranda Ribeiro,[3] foi encontrar o Pé de Garrafa em Jacobina, Mato Grosso. Seu informante, Sebastião Alves Correia, administrador de uma fazenda local, fez uma descrição mais ou menos completa. Disse ele: "O Pé de Garrafa tem a figura dum homem; é completamente cabeludo, e só possui uma única perna, a qual termina em cascos em forma de fundo de garrafa."
É uma variante do Mapinguari amazônico e do Capelobo. Grita, anda na mata e tem uma pegada circular. No entanto, não há nenhuma informação se o Pé de Garrafa mata para comer ou é inofensivo. Também, não há relatos de que já tenha atacado alguém.
Nas velhas missões de Januária, em Minas Gerais, o mítico Bicho-Homem é também chamado de Pé de Garrafa. O Prof. Manoel Ambrósio,[4] dá a seguinte explicação: "O Bicho-Homem tem um pé só, pé enorme, redondo, denominado por isto - pé de garrafa."
Há outro personagem cujo nome é Pé de Quenga, uma espécie de demônio que deixa vestígios semelhantes ao que seu irmão Pé de Garrafa imprime na areia dos riachos e no barro vermelho. São rastros redondos, configurando a intrigante presença de uma entidade fora do comum. O Pé de Garrafa é sem dúvida o Pé de Quenga. Mas não possui poderes infernais, nem a fome insaciável dos demais monstros da sua categoria.
Barbosa Rodrigues[5] informa que o Caapora era conhecido em certos Estados como sendo unípede e com um casco arredondado. O Pé de Garrafa possui, claramente, traços característicos do Caapora, do Mapinguari, do Capelobo e do Bicho-Homem. A pata redonda que lhe dá o nome, lembra o Pé de Quenga. De verdade, o mito está tão mesclado, que o Pé de Garrafa, gritador inofensivo do Piauí, perturbador dos caminhos em Mato Grosso, ao chegar em Minas Gerais, ganha o nome de Bicho-Homem, e torna-se um devorador insaciável de viajantes e residentes incautos.
Nomes comuns: Pé de Garrafa, Pé de Quenga, Bicho-Homem, Homem Selvagem (Espanha).
Origem Provável: O Mito é conhecido no Piauí, Minas Gerais, Mato Grosso, e suas variantes nos estados do Norte do Brasil. trata-se de uma variante do Mapinguari Amazônico ou Bicho-Homem mineiro.
Nos países Bascos, Espanha, sabe-se da existência de um mito chamado em língua local de Basayaun ou Vasajaun, que quer dizer "Senhor" ou "Homem Selvagem", cujo pé esquerdo, coincidentemente, também deixa estampada no solo uma pegada redonda.
Mas o ente fantástico brasileiro não tem origem européia.
No mito do Saci Pererê, há a menção à uma ave, de nome Mati-Taperê ou Peitica, que deu origem ao mito da Matinta Pereira, cujo canto, semelhante a um grito de lamento, reverbera em todas as direções, deixando confuso quem o escuta, assim como acontece com o enigmático grito do Pé de Garrafa. Outra semelhança com o mito do Saci, deve-se ao fato de também este desorientar os viajantes ou caçadores em trânsito pelas matas mais remotas.
"Quando os senhores chegarem à mata da Poaia[7], hão de verificar se é ou não verdade o que lhes conto. Nas horas do pôr do sol, quando a gente vem voltando cansado para o rancho, ouve o grito dum companheiro. Para, presta a atenção; o grito se repete. Naturalmente dá resposta e vai em procura do companheiro. Chegado ao lugar donde provinha o grito, não vê nada, mas o grito se repete aqui para direita ou para esquerda. Nova caminhada, outra vez o grito noutro lugar, e por mais que se procure, nada haverá de encontrar."
"É o Pé de Garrafa. O rastro está no chão, tal qual o sinal deixado no pó pelo fundo duma garrafa. Se o poaieiro[7] não é bom, está perdido, deu tantas voltas que nunca mais acha a saída. Um conhecido meu encontrou com esse "bicho". Tem a figura dum homem; é completamente cabeludo, e só possui uma única perna, a qual termina em casco em forma de fundo de garrafa. Eu nunca o vi, entretanto vi e ouvi os gritos, e os senhores que vão à Mata da Poaia, hão de, pelo menos, ver o rastro como eu".
Percebe-se, antes de tudo, a sinceridade do contador. A natureza do conto, tão intensamente dado como verídico, parece comprovar de sobra o que foi dito.
É o mito denominado Pé de Garrafa. Trata-se duma espécie de Caapora que habita as matas, anda pelas estradas ou ronda as casas à noite, gritando como um desesperado. Toda a gente se encolhe nas redes, tomadas pelo medo. Os meninos só faltam morrer... E o bicho pelo escuro a gritar, gritar... Pela manhã, todos se levantam e vão examinar o solo em torno das cabanas, ou o saibro dos caminhos. Não há dúvidas. Era mesmo o Pé de Garrafa que andava por ali na sua resignada penitência.
As provas são os rastros deixados no local, pegadas inconfundíveis das quais lhe veio o apelido invulgar, verdadeiros buracos redondos, e com uma saliência no meio, como se aquela coisa enorme tivesse à ponta das pernas não patas, pés, cascos ou garras, mas verdadeiros fundos de garrafa.
Gustavo Barroso - As Colunas do Templo, pp. 254/5. Rio de janeiro, Civilização Brasileira Editora, 1932.
[2] Cabral, Alfredo do Vale. Achegas ao Estudo do Folclore Brasileiro. Obra original de 1883-84. Reeditada pelo Ministério da Educação e Cultura / Fundação Nacional de Artes, Rio de Janeiro, 1978.
[3] Alípio de Miranda Ribeiro - "Na Bacia do Prata", em Revista do Brasil, número 50, p. 139, São Paulo, fevereiro 1920.
[4] Prof. Manoel Ambrósio - Brasil Interior (Palestras populares - Folclore das margens do São Francisco), p. 69. São Paulo, 1934.
[5]Nascido no Rio de Janeiro em 1842, João Barboza Rodrigues estudou no Instituto Comercial, onde também exerceu o cargo de secretário. Autodidata em ciências naturais, estudou botânica, etnografia e antropologia, conhecimentos que lhe renderam prestígio e respeitabilidade de especialista nas áreas, inclusive para as pesquisas médicas.
Os estudos do autor sobre a cultura indígena foram possibilitados pelas pesquisas botânica e zoológica feitas por ele no Amazonas e no Pará, a pedido do imperador Pedro II. A fim de complementar os estudos de Martius, Richard Spruce e Alfredo Wallace sobre a flora e a fauna brasileiras. João Barboza Rodrigues também manteve um estreito contato com os índios.
Diante da possibilidade de estudá-los, conseguiu reunir e oferecer importantes informações para a época sobre as práticas culturais do aborígine. Algumas delas podem ser observadas nos textos "Lendas, crenças e superstições" e "O canto e a dança selvícola", publicados na Revista Brazileira, em 1881. Além destes artigos, Barboza Rodrigues publicou o livro Poranduba amazonense, em 1890.
[6] Relato coletado pelo Dr. Alípio de Miranda Ribeiro, do administrador da fazenda Jacobina, o Sr. Sebastião Alves Correia, no Mato Grosso, e publicado na obra citada na nota 2.
[7] Por volta de 1830 surge a extração da ipecacuanha ou poaia, Cephaelis ipecacuanha. Nesta época, José Marcelino da Silva Prado, explorando garimpos de diamantes nas imediações do Rio Paraguai, em região próximo à Barra do Bugres, observou que seus garimpeiros usavam, quando doentes, um chá preparado com raiz de arbusto facilmente encontrado à sombra da quase impenetrável floresta da região. Tratava-se da "poaia", que era antiga conhecida dos povos indígenas, que tinham repassado seu conhecimento aos colonizadores. Curioso e interessado, o garimpeiro enviou amostras da planta para análise na Europa, via porto de Cáceres e Corumbá. Desta raiz é extraída a Emetina, substância vegetal largamente utilizada na indústria farmacêutica, principalmente como fixador de corantes.
Constatado oficialmente seu valor medicinal, iniciou-se, então, o ciclo econômico da poaia, de longa duração e grandes benefícios para os cofres do Tesouro do Estado de Mato Grosso. Esta planta é extremamente sensível, abundando em solos de alta fertilidade sob árvores de copas bem formadas. Seus principais redutos eram áreas dos municípios de Barra do Bugres e Cáceres. A princípio, os carregamentos seguiam para a metrópoles via Goiás, depois passou a ser levada por via fluvial, com saída ao estuário do Prata. Os poaieiros eram os indivíduos que se propunham a coletar a poaia.
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