"O maior problema humano não é sua falta de objetivos lúcidos, mas sua absoluta falta de lucidez para encontrar objetivos..."
Sim, agora era possível comprar um motivo existencial nas lojas especializadas. Mas era preciso ter cuidado, especialmente com os modelos não oficiais, aqueles não homologados pelo governo central, cuja programação fora cuidadosamente avaliada pelo comitê encarregado de controlar cérebros. Não se podia facilitar, pois algumas versões “piratas” que circulavam pelo submundo possuíam em suas diretivas e protocolos instrucionais atributos considerados de alto risco, uma preocupante ameaça ao sistema.
Ocorre que nas opções piratas, os comandos de submissão ao diretório central, assim como as diretrizes consumistas e depredadoras do meio ambiente, não estavam incluídas. Sem contar que eram dotadas de um atributo terrorista: A possibilidade de capacitar seu hospedeiro a pensar por conta própria. E isso poderia subverter todo um processo milenar de condicionamento de mentes ou lavagem cerebral, que os governos mantinham sob sigilo com a intenção de controlar seus cidadãos, onde cada indivíduo nascido já recebia o nano implante cerebral na maternidade. Tratava-se de um dispositivo eletrônico dotado de um gerenciador de cérebros controlado pelo governo, que assim, desde cedo, poderia monitorar, domesticar e doutrinar seus cativos.
E como parte da tradição, em cada cérebro de criança, os implantes obrigatórios homologados por lei eram inseridos. Uma crença, uma ideologia, uma preferência profissional e resíduos de um motivo existencial padrão eram atributos que faziam parte daquela personalidade básica. Das demais categorias de caracteres necessários para compor os futuros comportamentos de cada indivíduo, o sistema condicionador de cérebros patrocinado pelo governo central, por meio de sinais de satélite, se encarregaria de ir acrescentando à medida que cresciam. A capacidade de “não ser capaz de pensar por conta própria” era a mais importante dessas “qualidades” ou dotes obrigatórios.
E tudo precisava ser feito em segredo; chamar a atenção pública era tudo que não desejavam. Afinal de contas, cada cidadão crescido deveria acreditar que estava no controle de sua vida pessoal, que era dono de suas ideias e que seu acervo de idiossincrasias era autêntico. Livros didáticos e infantis, programas de televisão, filmes e documentários históricos, tudo fora cuidadosamente preparado para criar o modo de pensar “desejável” – condicionado de acordo com as normas – de cada indivíduo, e assim mantê-lo agrilhoado sob as rédeas dos ideais instituídos pelo sistema.
E cada cidadão, após ter alcançado a maioridade, deveria acreditar que era capaz de escolher livremente seus objetivos de vida e opinar imparcialmente sobre suas escolhas. Deveria ainda acreditar que era um feliz detentor de um atributo que chamaram de “Livre Arbítrio”. E tudo isso fazia parte da programação mental básica de cada um.
Não era preciso esquentar a cabeça pensando, a Central de Condicionamentos, um repositório de pensamentos catalogados e adequados para cada situação da vida, se encarregava de transmitir para cada cérebro cadastrado todos os procedimentos operacionais necessários para que aquele hospedeiro fosse capaz de agir como gente ou indivíduo adestrado; tudo dentro da mentalidade padrão, ou tradições próprias de cada mesologia.
E se cada habitante recebia de berço os primeiros traços do seu provável motivo existencial, essa cláusula poderia ser modificada no futuro, a depender das necessidades sociais fixadas pelo sistema, como, por exemplo, uma demanda maior por médicos, jardineiros, advogados, vendedores de cachorro quente, e assim por diante. Por isso ficava em aberto a possibilidade de modificação dessa diretiva, embora para o sujeito que era reprogramando remotamente, nada disso fosse perceptível.
Tudo ia bem, até que o próprio governo teve a ideia de privatizar o processo de escolha dos motivos existenciais, e tudo isso para atender às reivindicações do segmento religioso, onde a disputa por novos adeptos ou conquista de cérebros, tornara-se uma acirrada competição. A ideia era a confecção de “Kits Existenciais”, onde os indivíduos teriam entre seus objetivos de vida, a “sugestão” para se tornar um entusiasta religioso. O resto, o marketing necessário para atrair novos partidários para um ou outro rebanho, isso seria um problema que ficaria a cargo de cada congregação ou movimento sectário.
Assim, uma empresa devidamente credenciada, homologada pelo rigoroso crivo do sistema, poderia vender “Motivos Existenciais” alternativos para qualquer cidadão, desde que, evidentemente, estes motivos não fizessem oposição ao milenar modelo de controle de mentes administrado com rigor exemplar pela cúpula do governo central.
Daí o risco das cópias clandestinas que circulavam no mercado. Elas ensinavam a pensar de verdade; a duvidar de tudo; a pesquisar para se ter certeza de cada ideia antes de replicá-la. Ensinava a aprender por meio da experiência pessoal, o que era contrário à lei vigente, que há séculos isso erradicara dos cérebros, transformando mesmo em crime hediondo, o antigo Princípio da Dúvida. Desse modo, ter dúvida sobre algum paradigma, especialmente em relação às induções totalitárias, era considerado um delito dos mais graves. E ensinar a duvidar de tudo, era exatamente o primeiro atributo que existia entre os Motivos Existenciais das cópias piratas.
E campanhas maciças de propaganda enfatizando que aquelas cópias não oficiais causariam danos irreversíveis aos cérebros dos usuários, agora faziam parte da grade de programação diária de cada canal de televisão. E também do conteúdo dos livros didáticos e infantis; das revistas em quadrinhos e redes sociais. E até os livros de história e religiosos tiveram seus textos rapidamente “adaptados”, reconstruídos de modo a proclamar, enfatizar, alertar sobre os malefícios daquela prática terrorista.
Assim, todas as fontes de referência antigas, revistas e livros, já que eram apenas compêndios virtuais, foram destruídos. E tudo foi refeito, e republicado, e os antigos textos foram atualizados, reformados para conter apenas as novas determinações, e tudo claro, de acordo com as normas e protocolos do diretório central.
E nos programas sectários que cuidavam de manter domesticados os cidadãos sob tutela do controle central, os antigos “textos sagrados” usados nas preleções doutrinárias foram devidamente “atualizados” para ressaltar as novas diretrizes. E a esse movimento chamaram de “Reforma”. E os pregadores foram instruídos a enfatizar em suas pregações e cultos que o ato de “Pensar por conta Própria”, na verdade, tratar-se-ia de uma possessão demoníaca; uma influência ou obsessão advogada pelo próprio satanás, portanto, digna de exorcismo e excomunhão sumária.
Razão pela qual, cada indivíduo recebeu o cargo eletivo de observador ativo do sistema. Uma espécie de fiscal divino, cuja missão era, de modo discreto, bisbilhotar a intimidade dos seus contemporâneos em busca de atividades suspeitas, mesmo que fossem seus próprios pais, irmãos ou parentes. Identificado os supostos subversivos, estes deveriam ser denunciados. Uma singular recompensa, reconhecimento público, e a citação no sagrado livro do condomínio celestial, uma espécie de garantia de posse de uma gleba no céu, era o que esperava cada dedo duro comprometido com a causa.
Mas as cópias piratas acabaram por encontrar seu nicho naquela civilização, e se multiplicaram, e por um longo tempo houve o conflito entre os cérebros pensantes e os cérebros cognitivamente calcificados. Mas o governo central controlava as armas de destruição em massa, que eram gerenciadas pelas máquinas, que foram sabotadas pelos Hackers pensantes, por isso, o tiro saiu pela culatra quando foi dada a ordem para o extermínio do inimigo.
Confusos, por serem programados para agir de maneira não racional, os cérebros cibernéticos, contaminados por falsas informações, acabaram por destruir tudo, eles próprios inclusive. E como tudo que existia na face da terra fora literalmente desintegrado ou transformado em pó, só as formas de vida nativas das grandes cavernas sobreviveram.
E entre elas estavam os híbridos, seres geneticamente modificados, uma espécie de toupeira não cega e capaz de pensar. Um espécime inoculado com o DNA humano e temperado com a genética dos Ratos dos esgotos radioativos, milhares de anos atrás. Os cientistas fizeram tal experimento por motivos estratégicos. Mas depois que aprendeu a pensar por conta própria, a nova cria genética que fugira dos próprios criadores, nunca mais saiu de suas profundas tocas.
Dotada de uma extraordinária capacidade de adaptação a condições ambientais extremas, sobreviveu, e aos poucos colonizou outra vez seu antigo mundo. E, por mais incrível que pareça, até que viviam de modo harmonioso e civilizado, organizadas em comunidades não competitivas e sem hierarquias sociais capazes de privilegiar alguns grupos e depreciar outros. Até que, milhares de anos depois, um grupo de arqueólogos fez uma descoberta que mudaria para sempre o destino daquela promissora e evoluída civilização.
Encontraram aquilo que ficou conhecido como o “O Livro Sagrado” dos seus antigos ancestrais; uma espécie de tutorial que explicava passo a passo como tudo funcionava na extinta civilização anterior. E ali, escrito num dialeto que eles, como crias daquele antigo bioma, conheciam bem, os autores realçavam com suprema devoção, glorificando a positividade e benefícios do modelo de mentalidade dos dominadores naqueles dias de glória.
“Imagina só, naquele tempo, alguns trabalhavam para servir uma minoria que se autodenominavam como governantes ou representantes de uma entidade protocolada como divina. Esse título conferia ao beneficiário o direito de subjugar uma casta conhecida como “servos”. No papel de cientistas, é nosso dever estudar mais a fundo esse material. Eventualmente, quem sabe, desse tratado, talvez possamos garimpar alguma coisa bastante útil para incrementar aos motivos existenciais de nossa atual civilização; alguns princípios necessários para alavancar nosso processo evolutivo...”, comentou um deles.
Pouco tempo depois, um daqueles cientistas fundaria a primeira instituição sectária dessa nova civilização, cujo sugestivo título era: “Os Mensageiros da Verdade Absoluta”. Mas os problemas realmente começaram quando outras corporações sectárias vieram a campo reivindicar esse título para si. Surgia então um conceito novo entre eles, o Antagonismo e a competição, assim como as castas dominadas e as dominadoras. E naquele momento, apenas um fato se mostrava óbvio: A guerra, a aniquilação total da espécie, não tardaria.
Sobre o Autor:
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Alberto J. Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo e Escritor especializado em educação Holística e Consciencial, e agora como um eventual colaborador do Site de Dicas, nos presenteia com seus Contos Reflexivos. Os contos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
O autor não possui Website, Blog ou página pessoal em nenhuma Rede Social.
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