Autora: Anne Marie Lucille[1]
Conteúdo Atualizado: 16 de Julho de 2024
Imagine uma coisa perfeita, aquela que finalmente atingisse sua plenitude existencial ou o seu ponto de chegada, de onde não mais precisasse progredir em nenhuma direção; de onde mais nenhum atributo, qualidade ou funcionalidade existente no universo lhe pudesse ser acrescentada.
Poderia alguma coisa ser criada sem um motivo? Sem motivo, o que quer dizer, função? Haveria razão para a existência de alguma coisa sem utilidade?
Um mundo perfeito só poderia ser concebido por indivíduos perfeitos. Mas, a existência de qualquer indivíduo já não sugere que ele está inacabado? Algo já concluído, finalizado, sem mais espaço para aperfeiçoamentos, mudanças, sem mais nenhum ponto a ser corrigido, sem mais atributo algum a lhe ser acrescentado, qual seria sua função ou utilidade dentro da progressão existencial universal, ou humana? Qual seria a razão da sua existência? O que poderia agregar a si mesmo, que já não o tivesse feito antes?
De acordo com as leis da natureza, aquelas sob as quais não temos controle ou jurisdição, o processo de destruição é o marco inicial do movimento de mudança. Trata-se da descontinuidade de um estado existencial para o nascimento de outro.
Descontinuidade significa transição, a desconstrução de um estado primário para outro mais aperfeiçoado ou regenerado. Entretanto, no nosso caso, onde a ideia de perfeição sugere rotina, continuidade, estagnação e estabilidade, compreender esta mecânica poderá não ser uma tarefa tão simples.
Uma criança não pode permanecer em seu status de criança para sempre, uma vez que há uma natural e permanente transformação em sua fisiologia. Ela crescerá, e à revelia de sua vontade, se tornará adulta. Não depende dela, já nasceu com essa proposta; não caberá a ela escolher. Nasceu para se modificar e não para permanecer estática na linha do tempo. Nascer já representa uma transformação de si mesmo, uma vez que deixou de ser um óvulo latente ou simples embrião fecundado para se tornar uma nova entidade viva que chamamos de criança.
Nasce porque ainda não está completa; completou apenas um estágio. Sendo ela própria um processo em andamento, ainda não está acabada, finalizada. Há incontáveis variáveis em sua fisiologia sujeitas às modificações involuntárias, e o próprio ato de nascer já representa a desconstrução ou transição de um estado para a criação de outro.
A transformação não voluntária é a lei geral da natureza de todas as coisas. Não há como evitar; não depende de nós, trata-se de um processo ou movimento espontâneo, e ocorre sem depender de opiniões, conceitos, tratados sociais, crenças religiosas ou de protocolos científicos. Pode ocorrer para menos ou para mais, mas é inevitável, impossível de ser contido.
Se algo existe para se modificar, pela lógica, está em processo de degeneração, aperfeiçoamento ou transição, ou não precisaria mais de retoque algum. Nasceria inerte e inerte permaneceria; seria o mesmo que não nascer. Sendo o processo de nascimento uma transformação, aquilo que é estático por natureza, não poderia existir. A existência de alguma coisa estática representaria uma violação da sua condição natural de não Transformação ou Mudança.
E o fato é que nada que exista é perfeito, pelo menos não segundo o que para nós significa a expressão “perfeito”. Para nós, perfeito quer dizer bem feito, sem falhas, sempre em comparação com o nosso ideal de impecabilidade. Mas nosso ideal de impecabilidade não pode servir de modelo, uma vez que somos incompletos, imperfeitos, falhos. Assim, nosso modelo de perfeição ainda é imperfeito, e nele sempre caberão mais e mais aperfeiçoamentos, inclusões, descartes, reparos e ajustes.
Nosso status de perfeição tem como base uma contrapartida imperfeita. Estamos então diante de entidades imperfeitas que na tentativa de criar a coisa perfeita usa como gabarito algo já criado e de natureza imperfeita. Em nosso mundo analógico todas as nuances ou variações das coisas são perceptíveis por meio da contradição.
E onde há contradição não pode existir harmonia, mas apenas transformação, desgaste, degenerescência, algo não possível de ocorrer com um modelo perfeito, não mais sujeito à influência dos protocolos da lei da transformação, ou processos de mudanças.
Perfeita seria a intocável lei das mudanças, da permanente transformação de tudo que há. Imperfeito para sempre seria o objeto sobre o qual esta lei atua. Mas, imperfeito não quer dizer mal feito, e antes disso, seria mais adequado chamá-lo de parcialmente feito ou incompleto. Existe para se modificar, para menos ou para mais, não sabemos até quando, não sabemos o porquê, e apenas podemos evidenciar que sempre foi assim, e que assim sempre será.