Autor: Anne Marie Lucille[1]
Conteúdo Atualizado: 14 de Julho de 2024
Observação Importante: Quando usamos a Expressão "Os Pais", estamos nos referindo aos dois Gêneros, e não apenas ao Gênero Masculino.
Pode até parecer inevitável, quando no passeio público, diante de desconhecidos, por força de um hábito herdado dos costumes do nosso meio e tomando como base alguns estereótipos da tradição, nós imediatamente tratamos rotular ou classificar os indivíduos, criando para eles perfis virtuais imaginários, e tudo isso segundo sua aparente Casta, Status ou Pedigree social.
Faremos isso examinando visualmente seu modo de vestir, postura ou força presencial, aparência física, gestos ou traços comportamentais mais evidentes, e caso surja uma oportunidade, seu nível de erudição.
Desse modo, o espaço público torna-se apenas mais uma espécie de passarela ou vitrine, onde todos podem se exibir na tentativa de mostrar uma realidade possível de ser demonstrada, mesmo que não seja verdadeira, por meio dos aspectos gerais que nossa aparência cuidadosamente trabalhada é capaz de transmitir.
E assim, nossa presença em lugares frequentados por muitos, se transforma numa oportunidade para a autopromoção; um gesto de exaltação à nossa força presencial, ou a importância social que cada um imagina ter, mesmo que sabidamente não a tenha. E cada indivíduo, agora no papel de vitrine de si mesmo, se esforça para parecer distinto, virtuoso, capaz de destacar-se no meio daquela multidão de iguais.
E uma coisa aparentemente simples como ir às compras, acaba por se tornar uma Competição Silenciosa, uma vez que, intimamente estaremos disputando uns contra os outros, maior distinção, o que significa conquistar méritos diferenciados, e a consequente preferência pela atenção do resto da platéia. E embora não possamos prescindir das relações em nosso viver, logo transformaremos este fato simples, corriqueiro e banal, num enorme problema.
Talvez tenha se tornado um hábito tão natural que a maioria nunca terá olhos tão aguçados para ter consciência disso. Ocorre que assim fomos instruídos em casa, na escola, no templo religioso, no trabalho, nos esportes, no lazer, e por meio de livros e filmes. Trata-se do status comportamental padrão adotado como guia em nosso atual modelo civilizatório. Afinal de contas, existirá alguma ação de nossa parte que não seja motivada por alguma proposta de ganho, mérito ou satisfação pessoal?
A única intenção por trás do ganho é a coroação de um mérito, uma evidência concreta da conquista de uma vantagem ou a certeza de que chegamos à frente de alguém. Impossível de ser refutado é o fato de que não existe o sentimento de sucesso pessoal sem a sombra do insucesso de outro a nos servir de referência.
O significado ou objetivo da vida, decerto é aquele que damos a ela, uma vez que a natureza explicitamente não concedeu a ninguém uma cartilha com estas recomendações, deliberações, gabaritos, atribuições ou protocolos formais.
E já que não conhecemos qual a destinação de nossas vidas, deliberamos a terceiros este papel. Assim, a autoridade das tradições, a mesma responsável pela criação e gestão das regras sociais, se tornará nosso guia, determinando qual deverá ser a finalidade do nosso inteiro viver, assim como todo um protocolo formal de como devemos nos comportar.
É um modelo no qual cada espaço deve ser conquistado, e aquilo que já possuímos, deve a todo custo ser preservado. Neste modo de vida idealizado por nossos ancestrais e guias, a felicidade passa a ser um simples objeto com forma, simbolismo e conteúdo posível de ser comprada no varejo social, ou tomada à força de quem supostamente já a possui.
Dentro de uma condição regulamentada com base nestes parâmetros ou protocolos sociais, Pensar em igualdade entre os povos é quase um delírio, e isso ocorre porque cultuamos o nacionalismo, as ideologias, as crenças, a exaltação à etnia, a hierarquia do status social, a própria erudição, e assim por diante. Como podemos idealizar a liberdade entre credos se há uma deliberada segmentação criada por cada ordem sectária com o firme propósito da autopromoção e desconstrução das demais concorrentes?
E assim verdadeiras batalhas entre os líderes ideológicos, religiosos, eruditos e filósofos sociais são travadas para reivindicar a propriedade de uma ou outra tradição milenar com a intenção é promover a superioridade de uma etnia, ideologia, credo ou doutrina, grupos de afinidades, e assim por diante.
Fazemos questão de sublimar nossa raça, culinária, indumentária, estilo de vida, ícones pessoais, rituais e cultos que simbolizam nossa origem e identidade cultural, deixando claro que estamos em luta silenciosa, ou aberta, contra outros grupos sociais, étnicos, sectários ou ideológicos diferentes do nosso.
“E o mundo se transforma uma grande arena ou praça de guerra, onde a competição se torna a regra. Estamos em disputa contra todos, até mesmo contra aqueles que ora residem dentro de nossa casa...”
Competimos contra nossos irmãos, pais e amigos, ou com quem quer que seja. Em nossos interrelacionamentos, nunca nos aproximamos de um estado de conciliação. Ao invés disso, cada vez mais investimos e valorizamos os conflitos, e todo nosso viver está centrado neste princípio.
Filosoficamente é fácil dissertar sobre a miséria social, desencontros e anomalias da humanidade, mas, em casa, ainda somos contraditórios, e na maioria das vezes, insensatos. Criamos filhos dentro de um ambiente competitivo, onde marido e mulher disputam, cada um ao seu modo, seu próprio e indivisível espaço. E naquele ambiente onde deveria existir ressonância e equilíbrio, irmãos disputam entre si a preferência dos pais, assim como uma distinção pessoal, dentro de cada e na rua, capaz de colocá-los um degrau acima dos outros.
Pais envaidecidos promovendo a suposta superioridade dos filhos ou da própria família não são eventos raros. Tal postura nos coloca em conflito com todas as outras famílias. E a recíproca é absolutamente verdadeira. Acentuam-se assim de modo dramático as divisões que já são incontáveis dentro da complexa mesologia humana.
E ao criticarmos o crescente nível de indiferença que existe entre as pessoas, da falta de respeito em relação ao espaço de cada um, ignoramos nosso ativo papel na instauração e continuidade desse Status Quo, nem um pouco sensato.
Em nosso trabalho há uma exigência não explícita de que precisamos ser os melhores. O mesmo ocorre ostensivamente em nossas relações, e de maneira bizarra, até nas desgraças pessoais. Ensinamos aos nossos filhos que deverão lutar pelos seus objetivos, mas, raramente, orientamos sobre ética, consideração, respeito, sensatez e honestidade.
Instigamos a competição e ignoramos, ou tratamos com indisfarçada indiferença, a tolerância como forma de convívio. Ao obrigar que nossos filhos sigam profissões que nos agradam, raramente levamos em conta suas vocações e verdadeiras predisposições. Os jovens precisam de orientação, não de ações mandatórias, ou cumprimento de suas obrigações e deveres por força do medo. Impor é tirar a liberdade, e sem liberdade para ir e vir, o respeito entre indivíduos torna-se impossível.
Ao assumir a postura da individualidade não compartilhada, cada sujeito está a criar em torno de si mesmo uma blindagem que, inevitavelmente, irá separá-lo dos demais. Poderão conviver entre si, mas sem abrir mão dos seus interesses pessoais em prol de interesses coletivos, independente dos efeitos em relação aos outros. Nasce assim o homem egocêntrico, que enxerga todos os demais como meros coadjuvantes ou meios secundários, embora necessários, para que ele próprio seja capaz de atingir seus objetivos.
Ao se constituir o núcleo familiar, pais e filhos, como grupo social, tendem a se isolar das outras famílias, ou núcleos. Compreender porque fazemos questão de nos isolar uns dos outros constituindo guetos familiares, com ideologias e crenças, preferências, opiniões ou hábitos próprios, nos facultaria à descoberta da maioria das causas dos conflitos humanos.
Não é possível a criação de um mundo solidário e convergente na resolução dos problemas sociais comuns à todos os homens, quando plantamos em nossos filhos a ideia de que demandas pessoais precisam ser conquistadas à força. Do mesmo modo, não podemos instituir que qualquer um em dissonância com nossas crenças, ideologias, cultos e pontos de vista, seja considerado inimigo declarado.
Tal postura é um decreto de que a “verdade” e o bom senso estão sempre do nosso lado, sob nossa exclusiva jurisdição. Estamos a apoiar a falta de respeito e a intolerância como um caminho necessário para se chegar ao sucesso, que no fim das contas, por maior e mais próspero que aparentemente seja, nunca deixará de ser temporário.