Autor: Alberto Grimm[1]
Atualizado: 21 de Maio de 2022
Do ponto de observação onde se encontrava, ele podia ver quase toda cidade, ou o que restara dela. Não sobrara muita coisa, apenas alguns esqueletos daquilo que um dia fora os mais altos e sólidos arranha-céus daquela nação. O resto era apenas uma massa uniforme de entulhos, onde era impossível encontrar alguma coisa que permitisse identificar qual teria sido sua forma ou função original.
O espesso manto negro que cobria o céu ainda não se dissipara totalmente, mas alguns discretos focos da luz do sol, como se fora pequenas chamas de um amarelo pálido, já podiam ser vistos em dois ou três pontos por trás das nuvens. Eram poucos, apenas cinco pontinhos haviam sido mapeados em todo planeta, sem mudança alguma visível nos últimos 50.000 anos, conforme atestavam as aferições deixadas de uma geração para outra. Mas já representava um progresso importante perto dos 300.000 anos de escuridão quase total de antes.
Naquele mundo praticamente sem cor, pouca coisa havia para se observar. As plantas eram mirradas, e aquelas consideradas gigantes, não mediam mais que dois palmos de altura. Suas folhas agora possuíam uma cor acinzentada, e as árvores frutíferas, além de produzirem poucos frutos, dois ou três a cada nove ou dez anos, só concebiam variedades envenenadas. O ar também se tornara excessivamente tóxico, e uma neblina permanente tornava a visão de qualquer um eficaz apenas para curtas distâncias. Para médias ou longas distâncias, todos se contentavam em apenas contemplar silhuetas difusas, que mescladas com os gases que saíam da terra, se assemelhavam a espectros móveis se esgueirando por dentre a névoa permanente.
Com o tempo, as gerações sobreviventes desenvolveram a capacidade de se adaptar a tais condições ambientais, assim como a de enxergar na escuridão quase absoluta. Graças a esse atributo, do ponto de observação onde agora se encontrava, podia ver o espectro da cidade. Não estava sozinho, dois amigos o acompanhavam. Aquele perímetro por muito tempo ficara de quarentena, e só nos últimos cinco anos, pouco a pouco, as autoridades haviam autorizado o retorno dos sobreviventes numa tentativa de recolonizar o lugar.
No entanto, como ainda era uma situação incerta, o governo criara incentivos especiais para todos que desejassem fixar residência no local. Cada novo inquilino receberia um generoso bônus alimentação, suporte à moradia, e um emprego vitalício, onde teria garantido por toda vida um cargo de supervisor especial da secretaria do meio ambiente.
O trabalho de cada supervisor era simples: Deveriam se estabelecer no local, e ao mesmo tempo, explorar as regiões mais próximas efetuando medições dos níveis de poluição ambiental ainda existente. Feito isso, através de relatórios mensais ou emergenciais, manteriam informadas as autoridades. Para tornar a tarefa possível, cada inspetor receberia um avançado medidor portátil para o processo da coleta, análise e posterior compilação dos dados que seriam transformados em relatórios.
O treinamento necessário para se tornar um supervisor incluía lições de sobrevivência a ambientes de extremo risco. Assim, aquele pequeno grupo que agora espreitava os arredores daquelas ruínas, na verdade representava uma força de elite dentre os sobreviventes. Esse cuidado excessivo tinha uma razão de ser. Aquela não era uma cidade comum, já fora um local temido por todos antes da destruição; uma verdadeira lenda viva do pavor. E de fato, por gerações, fora o argumento preferido das mães para assustar filhos pequenos desobedientes, especialmente aqueles que teimavam em não ir pra cama cedo.
Como cenário das lendas mais temíveis, diziam que monstros de caudas longas comedores de crianças, eram seus habitantes mais amistosos. Eles próprios lembravam claramente quantas noites ficaram sem dormir, pois suas mães diziam que crianças que cometessem alguma traquinagem, quando adormecessem, seriam levadas para lá. Concretamente, havia uma Zona Proibida, da qual ninguém, sob nenhuma justificativa, deveria se aproximar. Eis, portanto, o motivo pelo qual existia um amplo e inviolável perímetro de exclusão, que todos, sem exceções, deveriam respeitar.
Eles agora conheciam a verdade, pois nas primeiras tentativas de repovoar a cidade, dezenas de grupos haviam desaparecido misteriosamente naquela localidade. Só depois de muita pesquisa e consultas a antigos documentos e mapas da região, é que acabaram por descobrir o motivo. Para as centenas de pioneiros que no passado ignoravam a tudo isso, nada mais poderia ser feito. Mas, para as futuras gerações, havia uma chance, desde que o local fosse devidamente demarcado e isolado.
Esta era também uma das tarefas da equipe. Tratava-se de uma missão secreta, de altíssimo risco, por isso tanto treinamento recebido. Nunca poderiam revelar a mais ninguém o que ali encontrariam, e deveriam assim definir os limites até onde os futuros habitantes do lugar teriam permissão para ir. Assim, todo cuidado durante a aproximação à Zona Proibida era pouco. Usavam roupas especiais e máscaras herméticas contra qualquer tipo de toxidade ambiental.
De certo modo, não havia outra preocupação em explorar aquela cidade fantasma, pois nenhuma outra forma de vida inteligente conseguira mais se desenvolver diante de tão inóspitas condições. Por isso mesmo, não precisariam temer eventuais criaturas inamistosos ou ameaças predadoras.
Eles eram, sem dúvida, a última espécie inteligente sobre o planeta, e tudo isso graças a sua espetacular capacidade de adaptação aos mais extremos desvios climáticos e ambientais. E apesar de tanta adversidade, mesmo levando em conta as dramáticas mutações genéticas que incondicionalmente a todos daquela civilização acometera, se transformaram em seres racionais, conscientes e justos. Bem treinados, prontos para sobreviver mesmo ante as mais hostis condições de insalubridade, devidamente equipados e cautelosos, seu único inimigo era sem dúvida a temida Zona Proibida e seus milenares segredos ocultos.
Motivo pelo qual, ao se aproximarem do local, uma grande tensão era evidente em seus rostos.
E diante deles, a visão assustadora de altíssimos muros de pedra negra, que parcialmente destruídos pela erosão da chuva ácida, escondiam em seu interior a causa dos maiores pesadelos daquela civilização. E apesar das agressões dos sedimentos das intempéries, ainda podia-se ler um nome na fachada do prédio principal, daquilo que um dia já fora uma fábrica, a maior do mundo na fabricação de um produto chamado Inseticida.
Era uma visão aterrorizante. Mas eles, como os melhores dentre os melhores da sua espécie, não podiam se deixar levar por antigos temores, afinal de contas, tinham uma importante missão a cumprir. Era possível ler claramente o nome que milagrosamente resistira quase intacto à destruição do prédio. E um deles leu a palavra da fachada com a voz alta e embargada: “DETEFON”[2]E o chefe da equipe engoliu um seco e disse: “O medidor informa que a área ainda é altamente tóxica, para nós, as Baratas. Felizmente estamos com roupas especiais e herméticas máscaras protetoras...”
DETEFON[2] – É o nome comercial de um dos mais antigos e conhecidos inseticidas multiuso. Famoso pela sua eficiência, sem dúvida, sempre foi um verdadeiro predador sintético de insetos.
[1]
Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Holística e Consciencial. Os Contos Reflexivos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
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